Santiago de Compostela é uma das mais belas cidades da Europa. Mas o burgo de matriz urbana medieval está longe de ser um museu de pedra: é, aliás, uma das cidades mais animadas da Espa nha.
Em vários planos, na verdade: religioso, cultural e lúdico.
O que poderá não ser mais do que uma lenda está na raiz da edificação da grande catedral de Santiago de Compostela e é, afinal, fundamento de uma das mais carismáticas cidades europeias. Contam essas narrativas, que foram sobrevivendo durante séculos no verbo de viajantes, peregrinos e cronistas, que o apóstolo Santiago veio ao nordeste da Península Ibérica - a Finisterrae do mundo de então - com a finalidade de converter as gentes da região.
Regressado à Palestina, aí veio a terminar os seus dias. Mas os seus discípulos acharam por bem devolvê-lo à longínqua terra evangelizada e decidiram transportar o corpo do santo por via marítima até Iria Flavia, povoação da costa galega, terra natal de Camilo Jose Cela. Aí foi o apóstolo enterrado, em lugar de que se perderia o rasto por largos séculos. Só quase no final do primeiro milénio, houve notícia da descoberta do sepulcro, acontecimento que acabou por abrir caminho à edificação do primitivo santuário.
A identidade espiritual e cultural de Santiago de Compostela é, pois, obra lavrada ao longo de mais de mil anos de peregrinações, de contínua invenção humana que fez do espaço urbano da cidade, com traçado eminentemente medieval, um harmonioso relicário de estilos, da solidez predominante do românico ao ritmo e teatralidade gótica, do esplendor renascentista e neo-clássico à ornamentalidade barroca ou plateresca.A aura do santo cedo ganhou fama pela Europa e o fenómeno das peregrinações teve início logo a seguir, começando a esboçar-se uma extensa rede de caminhos que viriam a ser tomados como o primeiro itinerário cultural europeu. Nascia assim no extremo noroeste da Península Ibérica um dostrês grandes centros das cristandade ocidental, a par de Roma e de Jerusalém.
Um notável exemplo desta singular harmonia descobre-se na Praza do Obradoiro, onde convivem a fachada barroca da catedral, O Colégio de San Jerónimo, com uma portada românico-ogival e um claustro gótico, o Palácio de Raxoi, de estilo neo-clássico, e o antigo Hospital Real, hoje Hotel dos Reis Católicos, com a sua inconfundível frontaria plateresca.
Esta é, definitivamente, uma das mais belas praças de Espanha, que pede ao viajante tempo e recolhimento: só com diversa luz se pode admirar plenamente a harmonia do conjunto, como de preferência só no despojado silêncio da madrugada (ou outro que cada um invente) se sorverá melhor a quietude e a solenidade desse espaço único.
Como se ligam as almas, os metais e a arquitectura de Santiago
O centro histórico de Santiago de Compostela corresponde a uma área mais ou menos circular, de traça e características medievais muito bem conservadas, outrora muralhada e hoje quase totalmente fechada ao trânsito. Caminhar pelas suas ruas estreitas, ao longo dos arcos da Rua de Vilar e da Rua Nova, descobrir o labirinto de vielas e becos, ou fazer desaguar o olhar sobre os amplos espaços das praças de Quintana e do Obradoiro, é um dos prazeres maiores que a cidade, declarada pela Unesco como «Património Universal da Humanidade» em 1985, pode proporcionar.
E pode acontecer que na Praza das Praterias, onde o barroco afeiçoado às pedras seculares convive com o esplendor artesanal da prata, o andarilho, subitamente inspirado, acabe meditando à semelhança de um personagem de Cela sobre “as relações que poderiam existir, como que por um estranho milagre de Deus, entre as arquitecturas, as almas e os metais”.Antes de qualquer aproximação sistemática à sua componente monumental, pode ser, pois, uma experiência singular para o visitante deixar-se perder no emaranhado de ruas e ruelas e deambular sem rumo entre vetustas pedras apostadas em resistirem à usura do tempo, respirar uma imersão em atmosferas onde convergem arte, fé e história.
O património monumental é numeroso e convém ao viajante munir-se de um bom guia para organizar as andanças: para além dos já citados, são imprescindíveis visitas ao Colégio de Fonseca, ao Convento de San Martinho Pinario, ao Palacio de Gelmírez, ao Colégio de San Xerome; Convento de San Domingos de Bonaval (onde está instalado o Museu do Pobo Galego), ao Centro de Arte Contemporânea, mesmo ao lado (assinado por Siza Vieira), ao Convento e Igreja de S. Francisco, à Casa da Conga, à Casa do Cabido, ao Convento de Santa Clara, etc, etc, etc.
O fogo de julho em Santiago de Compostela
O mês de Julho toca o zénite de uma vertigem de sucessivas espirais - religiosas, mas também lúdicas e profanas. O Apóstolo Santiago terá a seus pés os corpos fatigados de centenas de milhares peregrinos, muitos deles amontoando centenas de quilómetros na bagagem para o breve ritual diante do Pórtico da Glória, o colossal triptico escultórico de mestre Mateo.
Mas também os amantes que se votam a entregas profanas terão a sua conta: perdições gastronómicas que a generosa fecundidade das Rias Baixas alimenta, música e pantomina nas ruas, tocadores de flauta ou de gaitas de foles, saltimbancos e acrobatas, marionetas ou orquestras de câmara, tudo isto e o mais que se verá, porque numa cidade que se afirma santa todos podemos ter alma de artistas e aspirar a uma comunhão cósmica pela via dos folguedos.
É em torno da Catedral ou no seu interior que uma boa parte do programa tece os seus fios. Os concertos mais importantes - que se estendem pelo mês de Agosto - convergem para a Praza de Quintana, entre a austera muralha do Convento de S. Paio e a fachada da catedral que alberga a Porta Santa, um convívio bem paradigmático, afinal, das fiestas patronales de Santiago. Na Praza do Obradoiro, como na das Praterías, cuja fonte inspirou a Lorca um dos seus seis poemas galegos, tocam bandas ou circula gente ataviada de antigas farpelas: a Exaltación do Traxe Galego, um costumeiro desfile de moçoilas e rapazes de toda a Galiza mostra a variedade das vestes tradicionais do noroeste peninsular.E não podia o mote do fogo estar ausente: numa encenação simbólica, na noite de 24 para 25, artíficios do dito iluminam os céus da cidade, apinhada de gente como quase nunca. Teria Camilo Jose Cela razão quando na boca de um personagem deixou fala como esta: “... o Espanhol não crê em Deus, crê no fogo...”?
Como uma espécie de apêndice do programa religioso - que integra uma sintéticaProcessión do Padroado do Apóstolo Santiago a abrir a manhã do dia 25 - o interior da catedral acolhe uma cerimónia única e curiosíssima que se repete há mais de setecentos anos, embora apenas em ocasiões especiais como festividades ou visitas ilustres.
No fim dos ofícios mais importantes - a missa das ofrendas e a missa do peregrino - a multidão não abandona a catedral e acotovela-se ao longo do transepto para observar de perto a cerimónia do botafumeiro, um ritual que tinha outrora funções obviamente práticas - disfarçar os odores dos peregrinos. Oito tiradores fazem oscilar um enorme incensário com cerca de metro e meio de altura e 50 kg de peso com o auxílio de um complicado sistema de cordas, tambores e roldanas que se fazem cúmplices de certas e essenciais leis da Física.
Pouco mais de um minuto depois de iniciado o movimento, o ciclo atinge a sua amplitude máxima e o incensário quase toca o tecto do transepto, a vinte metros de altura, descrevendo um arco de 65 metros e rasando o solo a cerca de 70 km/h. Apenas se registaram, até hoje, dois acidentes, sem consequências para os peregrinos, o último no séc. XVII.
Pimentos e tabernas de Compostela
À terceira cidade santa da cristandade ocidental sobram prazeres terrenos. O viajante inadvertido cedo há-de moderar a perplexidade: a natureza humana não autoriza simplificações ou a dispensa dos sentidos. Séculos de peregrinações extenuantes foram assentando arraiais nas retemperantes mesas santiaguesas e apurando o gosto e a imaginação: a «calderada de pescados», o «arroz caldoso de mariscos», a «parrillada», as ostras e as vieiras, os lavagantes e os mexilhões, os lagostins, asxoubas, as ameijoas, etc., etc., são fiáveis testemunhos dessa caminhada histórica da gastronomia santiaguesa.
Em algumas dessas tabernas - como no «Porrón» - cantautores como Amancio Prada cantavam ou sonhavam alto, em tempos que inevitavelmente já lá vão. Noutras, como no velho «Tumbadiós», cultivava-se o segredo das fórmulas de família que tornaram famosas certas bebidas como o «levantamuertos”, uma mistura de licor de café com a saborosa e aromática aguardente galega.Certas tabernas de Santiago aliciam andanças alternativas ao viajante mais aventureiro ou menos crédulo das vantagens das normalizações gastronómicas. Nesses santuários onde impera o odor da fritura dos pimientosou do queso tetilla fumado, o viajante descobre entre dois copos de um ribeiro de pipa, turvo e primitivo, o bater do coração da Galiza profunda.
Mas fogo por fogo, o viajante deixar-se-á de bom grado queimar no fogaréu dos celebérrimos e incorrigíveis pimientos de Padrón - ou de Hébron, terreiro vizinho onde se criam os mais saborosos exemplares da espécie. “Como en la vida, quanto más picante, mejor”, dizia-se galegamente. Os pimentos de Padrón têm os seus indefectíveis mas também os seus inimigos figadais.
Os primeiros fazem deles o inseparável condimento da festa, omnipresentes e eternamente inquietantes, e para marcar bem o tom destes dias de permanente alvoroço, começam por tomá-los religiosamente de manhã, num desayuno tardio, acompanhados de uma taça de sidra a presion ou de albariño - não é difícil encontrar taberna onde assim os sirvam.
No país dos mil rios, como escrevia Alvaro Cunqueiro, não há que temer a sede. Também por isso, a festa do Apóstolo é o que é: uma erupção de fé que se complementa em polifónica composição com o fogo dos sentidos
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